Um encontro com a glória (e as nuvens)
Não se trata de uma simples viagem. Nem é um mero roteiro a seguir. Não é uma estatística, nem apenas mais um destino na bucket list pessoal. Trata-se de ir mais longe, de encontrar sentido na nossa existência.
Percorrer a lendária Rota 40 é alcançar a glória, é entrar na caminhonete e segurar um presente mais vivo do que nunca. A alegria é plena, a adrenalina blasfema as fibras da rotina e as transforma em um universo caótico, mas com um horizonte claro: o cume.
A crônica dessa aventura começou em Curitiba, capital do estado brasileiro de Paraná. Em um dos muitos espaços verdes daquela cidade ecológica, Raí, Ernesto e Osíris planejaram uma nova viagem em sua Honda CG 160. O destino? Argentina. Eles já haviam feito a Rota Nacional 3, de Buenos Aires a Ushuaia, e parte da Rota Nacional 40 na Patagônia, passando pelo incrível Caminho dos Sete Lagos, entre outros locais de interesse.
Desta vez, o roteiro passou novamente pela Rota 40, mas na região norte da Argentina. A ideia era combinar vinhos (fora de pista, claro), paisagens e aventura. Foi assim que decidiram que sairiam de Curitiba para Cafayate, no sul da província de Salta, destino conhecido pela qualidade de suas fazendas e vinhos, especialmente o Torrontés (vinha nativa). O objetivo final era fazer a travessia da Rota 40 do já mencionado Cafayate até La Quiaca, na província de Jujuy.
Entrada maravilhosa
Eles saíram de Curitiba para o sul e entraram na Argentina por Bernardo de Yrigoyen, uma cidade fronteiriça em Misiones, província conhecida por abrigar as famosas Cataratas del Iguazú, uma das Sete Maravilhas Naturais do Mundo.
Uma vez instalados em Cafayate, eles procuraram um bom lugar para descansar por algumas noites e desfrutar deste ponto turístico icônico, entre vinhedos e montanhas. O palácio de descanso foi o Patios de Cafayate, um pouco afastado do centro da vila. Com arquitetura colonial e elegância imaculada, duas luas em Patios serviram não só para recarregar baterias, mas para desfrutar plenamente da experiência de um lugar inesquecível. Sol furioso, vinho da mais alta qualidade harmonizado com as clássicas empanadas de Salta e relaxamento. Cafayate é sinônimo de boa vida.
Antes de pegar a Rota 40 para o norte, os amigos pararam em uma oficina mecânica para fazer uma revisão geral de suas motos. Ali, entre mates e uma rádio antiga, mas que transmitia uma música contagiante, foram atendidos por Funes, um homem de quase 80 anos, que viveu todas as épocas da vila. Ele falava apenas o suficiente e necessário, mas tinha muita gentileza, uma característica muito típica nessas latitudes.
Formações incríveis
Com as motos prontas para a fuga, a próxima parada seria em Molinos. Para chegar lá, a estrada de terra deu a eles uma das grandes obras-primas da natureza no norte da Argentina: a Quebrada de las Flechas. Incrível e chocante. Uma paisagem surreal para tirar mil e uma fotos. Raí, que tinha bons conhecimentos de fotografia, demorou mais do que seus colegas para tirar fotos em busca do ângulo perfeito.
Antes do anoitecer, os motoqueiros do sul do Brasil chegaram a Molinos para se instalar no hotel Hacienda de Molinos. Encantados com o calor do serviço, os três se sentiram como se estivessem estrelando o filme A Missão ou O Nome da Rosa. Tanto a fazenda quanto a cidade têm uma mística muito poderosa e os brasileiros a entenderam assim que chegaram.
Um café da manhã de campeões - sempre com doce de leite incluído - e de volta à estrada. O cascalho nunca foi um problema, muito pelo contrário. Isso lhe dava mais adrenalina e apimentava a experiência. Lembra-se que a ideia principal não era viajar por viajar, mas encontrar vida dentro da vida, elevar o espírito a céus insondáveis. E assim eles estavam fazendo.
Nuvens de Salta
O almoço - um sanduíche de milanesa com presunto, queijo e ovo - foi em Cachi. Antes de entrar no povoado "cheio de charme", os viajantes diriam em uníssono, uma foto com Juan Calchaquí, o imponente monumento ao índio que dá as boas-vindas. A igreja, o museu com sua bela recova, a praça e suas construções típicas pegaram os brasileiros, que não paravam de conversar com os locais.
Antes do final do dia, eles tinham que chegar a San Antonio de los Cobres. A altitude estava começando a ser sentida, mas a aventura estava se tornando mais épica. A temperatura caia gradualmente abaixo de 0 graus. No entanto, dentro do coquete Hotel das Nuvens, o calor de suas paredes afugentava qualquer indício de frio.
No dia seguinte, o último capítulo de Salta guardava uma verdadeira façanha de engenharia e transporte: o Trem para as Nuvens. Inaugurado em 1948 como um trem de carga, em 1972 tornou-se o que hoje é conhecido como um dos trens turísticos mais altos do mundo. Sete vagões para 460 passageiros. Entre eles estavam Raí, Ernesto e Osiris, que não paravam de se maravilhar e registrar com suas câmeras enquanto o trem passava pelo famoso viaduto La Polvorilla, a mais de 4220 metros de altura. "Maravilhoso, incrível!" eles concordaram.
Em terras de Jujuy
Adeus Salta, olá Jujuy. Depois de passar sob o icônico viaduto, a 40 adiciona mais cascalho e estradas sinuosas ao reel da estrada. As motos fizeram uma pausa e reabasteceram em Susques, um povoado que não ultrapassa 2.000 habitantes e que, no momento em que os brasileiros chegaram (15h), estava completamente vazia em suas ruas. Felizmente, um pequeno mercado estava aberto para comprar alguns doces estimulantes e muita água. Como curiosidade e fato colorido, em cada povoado eles sempre encontraram cachorros brincando na rua.
A noite tinha que ser no Hostal Rincón de Cusi, um refúgio caloroso em Cusi Cusi, mas antes de descansar o espírito guerreiro eles pararam para tirar várias fotos de drone - Raí tinha um muito moderno - no Vale da Lua. A bússola nas veias de cada um dos três amigos indicava o acesso à glória. Assim como foi no Trem das Nuvens, na Quebrada de las Flechas ou no cascalho sem fim, o Vale foi outra das apoteoses inexplicáveis da viagem.
Os homens de Curitiba não gostavam muito do mate, mas com Rubén - dono do albergue em Cusi Cusi - eles se divertiram tanto, que experimentaram várias rodadas de “verdes” durante o café da manhã.
A última parada da façanha tinha como destino La Quiaca. Casacos fortes e um capacete inquebrável para enfrentar os 15 graus abaixo de zero que marca a manhã na Puna (a Rota 40 é uma aventura séria).
Em outro dos desvios inevitáveis – a natureza argentina é uma infinidade de possibilidades fotográficas – os viajantes tinham ouvido falar do Farallón de Cabrería. E foi para lá que eles foram. Cada passo que os aproximava do Farallón era uma sequência perfeita de caleidoscópios de montanha. As motocicletas estavam cheias de sujeira, porém estavam mais cheias de uma existência irrepetível.
Final grandiloquente
Era algo supremo, mas ainda mais foi chegar ao Farallón, uma parede gigante que dignifica a erosão e o movimento das placas. Majestoso, embora o adjetivo imperial se encaixe melhor.
Adeus à imagem física do Farallón – que ficará para sempre em suas retinas – e de volta à Rota 40 para finalmente chegar a La Quiaca. Os paranaenses pensavam que haviam chegado ao ponto mais ao norte da Argentina, mas Luis, um professor do ensino médio, que gentilmente tirou uma foto deles no pilar de pedra que marca o fim da Rota Nacional 40, disse-lhes que havia outras localidades ainda mais ao norte.
Além da desmistificação, nada manchou a alegria de uma viagem como essa que reinventou a amizade entre eles, os colocou à prova na motocicleta e os maravilhou com as vilas e paisagens familiares.
A glória não tem compaixão, nem atalhos. É alcançada pelos caminhos que ela estabelece ou se perde definitivamente. Não tem nada a ver com dinheiro, ou qualquer coisa parecida. É uma questão de quebrar as veias, apertar os molares e cruzar o infinito do impossível. Tudo isso e muito mais transmite a Rota 40 para você.