Patagônia na plataforma

25 June 2024

O vento sopra quase permanentemente na Patagônia, a região mais ao sul da Argentina e musa inspiradora de viajantes, exploradores e artistas, entre outros. Junto com as eternas distâncias e a clássica estepe, formam um tríptico de magia e mística que fazem deste lugar um destino diferente de qualquer outro no mundo.

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É possível que todas essas características gerem um senso de pertencimento e camaradagem extrema em cada canto patagônico. Nunca faltará a ajuda de um mecânico para consertar um carro – fundamental para a mobilidade –, o sorriso na recepção de um hotel ou a incansável generosidade dos guias turísticos, por citar alguns exemplos. Pode ser que os lábios fiquem rachados, mas a usina do silêncio sempre terá lampejos oníricos.


Manto sagrado


A sudoeste da Província de Santa Cruz encontra-se a cidade de El Calafate, que nos últimos 25 anos se tornou um ícone do turismo argentino e uma referência mundial. A razão? A pouco mais de uma hora, pela Rota Provincial Nº 11, encontra-se o Parque Nacional Los Glaciares, com o famoso glaciar Perito Moreno.


O Perito Moreno não é apenas mais um glaciar. Além de ser a imagem de El Calafate e uma das mais representativas da Argentina, é o único ao qual se pode acessar caminhando por meio de um sistema de passarelas, perfeitamente desenhadas para tirar uma e mil fotos, e alcançar a glória sensitiva.


Ano após ano, milhares de turistas de todas as partes do mundo chegam a esta cidade-vila – já conta com mais de 25 mil habitantes – com o objetivo de ver e, por que não, caminhar sobre o lendário manto de gelo.


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Desgelo em brasas cativas


  • “É a primeira vez que você vem?”
  • “Não, mas é a primeira vez que estou com você…”


Diz-se que o trem pode passar uma vez na vida. Para alguns, será um clichê. Para outros, um dito a ser impugnado e reformulado entre tantos altos e baixos cotidianos. De qualquer forma, a plataforma pode ser autodestrutiva se a locomotiva nunca chega. Por sorte, existe a Patagônia para aninhar sonhos de aventura cósmica.


E assim foi como a flecha suspirou no éter da Ondina de Úbeda e Fermín. Frente ao glaciar Perito Moreno, ele contemplava o momento sem que os ponteiros do relógio o cobrassem. Por sua vez, ela, ainda atônita pela magnitude do que estava vendo pela primeira vez na vida, tirava fotos de todos os ângulos.


A Ondina havia nascido há 25 anos em Úbeda, Jaén, Espanha. Era sua primeira viagem pela Argentina e, depois de passar alguns dias de fumaça artística e devaneios urbanos em Buenos Aires, partiu rumo a El Calafate, um destino obrigatório para qualquer viajante, especialmente vindo de tão longe.


Já em solo patagônico, a espanhola se instalou em um modesto, mas muito amigável hotel. Embora tivesse uma boa situação financeira, suas experiências de viagem costumavam ser solitárias e econômicas. Sua estadia no mundo não poupava euros, mas suas cinco estrelas tinham que fazer jus à sua existência.


Fermín era de Buenos Aires, mas após se formar como alergologista, se instalou primeiro em Bariloche e depois em San Martín de los Andes. Amava a Patagônia. Estava em El Calafate porque havia sido uma das paradas em sua viagem de moto pela Rota Nacional 40. Viajar por esta lendária rota era um dos sonhos do Doutor, que já tinha 28 anos.


A cena retorna às passarelas do Parque Nacional Los Glaciares, localizado a pouco mais de uma hora do centro de El Calafate. Fermín ainda não sabia que a andaluza – Jaén pertence à comunidade da Andaluzia – se tornaria posteriormente a mãe de seus filhos, Javier e Ámbar. No entanto, ao vê-la naquele estado de absoluto assombro diante da magnificência do glaciar e do Lago Argentino, sabia que podia se oferecer como fotógrafo.


A partir dos cliques, nada mais foi igual. Enquanto pedaços de gelo caíam esporadicamente, a Ondina começava a se concentrar mais em seu novo parceiro do que nas maravilhas patagônicas.


A estadia em El Calafate encerrou-se com cordeiros, algum sorvete de calafate, risadas de espuma, vidros embaçados e estufas pagãs entre os lençóis. Fermín voltou para San Martín de los Andes, uma vila saída de um conto à qual se pode chegar atravessando o mágico Caminho dos Sete Lagos. Enquanto isso, a andaluza, antes de retornar à Espanha, não perdeu a oportunidade de passar algumas noites em Iguazú para se maravilhar, desta vez, com as Cataratas do Iguaçu.

O glaciar sempre retorna


Independentemente de que o encanto com Fermín havia ficado impregnado em suas pupilas, a Ondina sabia que visitar El Calafate não havia sido apenas mais um destino em sua vida. A atmosfera da Patagônia, a estepe que não diz nada e ao mesmo tempo é verborrágica de emoções e, claro, aquele glaciar tão único lhe propunham um retorno em breve.


Passaram-se três ou quatro anos. Talvez cinco. A Ondina – ah, seu passaporte dizia Manuela Vicario – já havia percorrido uma grande quantidade de países para que El Calafate e seu glaciar ficassem na lista de grandes lembranças... e nada mais. Mas não. Aquele canto patagônico continuava a rondar sua mente.


“É hora de voltar”. As malas se fizeram valises e novamente em solo argentino. Manuela voltou ao lugar que a viu nascer pela segunda vez. A hiperconectividade eclipsou qualquer tipo de saudade de bolotas, toureiros noturnos e medronheiros.


“É um respirar diferente dos demais. A camaradagem é inflexível, a pausa é precisa e as distâncias, com Spotify e o mate (glória eterna a esta infusão!) não são nada longas”, grita Manuela aos quatro ventos ferozes da Patagônia.


“Não sei se ficarei eternamente, mas precisava ancorar meus instintos de boa vida e isso encontrei nesta terra inigualável. Não é apenas o Perito Moreno, nem o Spegazzini, nem o Upsala. El Calafate te pega, ups! Ainda me restam lapsos do espanhol de origem (risos). A questão é que El Calafate te envolve. Amo Jaén, Madri e muitos outros lugares da Espanha e da Europa. Mas, talvez, o destino tivesse algo diferente para mim”, assegura a Ondina enquanto seus filhos brincam no jardim de sua casa.


E Fermín? Durante os anos de “exílio” de Manuela, trabalhou um tempo em um hospital de Puerto Madryn, no lado leste da Patagônia. Madryn é o principal balneário da região, ideal para a observação da baleia-franca-austral. Teve algum relacionamento fantasma, mas, assim como El Calafate se enraizou na sístole da andaluza, a própria Manuela se instalou na diástole do portenho.

A Bahía Redonda foi testemunha de sua união – não são casados, mas não se enganam e se despedem com um te amo – e hoje eles dão um beijo no amanhecer calafateño no cerro Huyliche. Há lugares que emanam um elixir tão cativante que nem as marcas da banca de madrugada ficam isentas.


Não é preciso temer El Calafate. O pior que pode acontecer é se apaixonar e ser feliz. Vamos brindar, pois as pedrinhas do glaciar estão prontas e não há mais tempo a perder!



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